quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Giz


Pego o soldadinho verde. Ele tem algo como uma espingarda na mão. Ao lado dele, três outros soldados. Um com um rifle, outro com uma bazuca, o último com uma pistola. Do outro lado da fronteira um tanquinho de guerra, um soldado deitado na terra em posição de observação, com uma arma que não identifico, e por fim, dois soldados idênticos com coquetéis molotov. Que comece a guerra!
Movimentos, tiros, desvios, avanços e recuos. Parece que os coquetéis molotov são potentes, mas desprotegidos, os soldados são atingidos pelas armas de fogo. Enquanto isso, porém, o observador arisco deitado no chão atinge em cheio um dos soldados que fuzilava aqueles dos molotov. O tanque vem com tudo atirando, mas um tiro de bazuca basta para explodi-lo. Parece o fim de uma guerra, ou ao menos o fim da batalha daquela manhã. Venceram os soldados sem tanque e sem molotov.
Minha avó já está chamando. Tem linguiça frita na panelinha redonda de ferro para o almoço de hoje. Oba! Não sem antes ela reclamar de que mais uma vez eu e meu primo descascamos mais uma parte de sua parede jogando bola. Eu já fui um bom goleiro, mas os gols realmente destruíam a parede da vó Babita.

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Enquanto almoço penso que na parte da tarde irei construir novamente aquela trilha com quebra-molas e barrancos feitos de terra. Um quadrado de terra ao lado das roseiras da vó era meu espaço preferido de brincadeiras na infância. Irei fazer uma corrida. Além de tudo já imagino os carros favoritos, penso naqueles que são lentos, naqueles que vão se beneficiar do terreno. Imagino as conversas de bastidores, a expectativa das equipes e dos torcedores. Sinto que vou me divertir a tarde e me divirto já ao pressentir. O que poderá deter este sentimento, afinal?

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Para além daquele quadrado de terra, ao lado das roseiras, havia uma parte de cimento. O meu amor é um traço com giz em um chão de cimento. Eu desenhava o que vinha à imaginação, e o que era senão o desejo na pura expressão? Eu ando pela vida meio Amélie Poulain. Tem qualquer coisa em qualquer canto, estou certo disso. Eu tropeço por aí em quase tudo e paro nas pessoas. Qual o seu segredo? Não quer sentar um pouco para me contar? O medo toma conta de mim. Instantaneamente eu sinto saudade da vó gritando que tinha linguiça e era só correr para a panela de ferro. Eu não sei quase nada. Alguém me leve de volta à guerra dos soldados.

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O absurdo e o milagre são tão próximos, acha não? A vó Babita não mora mais lá, talvez em lugar algum, tipo um céu. Vai saber. Daqui um mês o pé de amora não será mais a minha casa. Minha irmã não chora por qualquer coisa mais. Eu choro. Talvez o mundo corra mais rápido do que eu gostaria, as coisas precisam me absorver. Eu não sei se vou conseguir morar em uma casa um dia. Qual o seu nome mesmo? Parece que te conheço de algum lugar, mas quem vai me dizer a verdade? É tudo imaginação? Recuso esta crença, mas temo. Eu sonho e fantasio, a esta altura você já sabe. A linguiça que a vovó fazia no almoço tinha o gosto da tarde com os carrinhos. O pão com manteiga da manhã tinha o sabor da guerra dos soldadinhos de plástico. Eu não sei pra onde foram todos eles. Eu não faço a menor ideia de para onde nós vamos. Isso te assusta como a mim? E você, para onde quer ir?

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Eu não sei o seu nome, não esse que a gente escreve e fala, eu não conheço a sua alma, mas será que dá pra conhecer? Essa dúvida me deixa tonto, mas é o que me faz querer mover, afinal. O sonho que eu carrego dá medo de dizer, mas o orgulho é a morte da abertura, e ela é tão fundamental! E você, será leal? Eu tenho tanto medo de você, justamente por não ver motivos para temer. É que o absurdo e o milagre são linhas paralelas, e está tudo junto enquanto você me atravessa. Conta pra mim o que você sonha? Conta pra mim da sua infância também? Qual o nome da sua avó?

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Sento ao seu lado, entrego um pedaço de giz amarelo. O que você quer desenhar? Faz seu traço, livre, o mais livre possível. Precisa que eu saia? Se quiser posso não olhar, mas como eu quero! Só não mente pra mim. Eu não sei o seu nome, mas parece que eu te conheço. Não sei de onde. Besta nisso pensar? Eu posso te pedir um último favor: só não mente. Eu comecei o desenho de um mapa, de um não lugar que eu quero visitar, que eu quero conhecer, que eu gostaria de morar. Ou a chuva apaga antes do desenho acabar ou a gente tatua isso na pele. Desenho o desejo. Eu não sou ninguém para fugir agora. Também não sou ninguém para ir. Bastaria um ticket, mas eu não sei o que fazer. Tem giz na sua mão, mas eu queria estar chutando bola na parede da vó. Eu queria que o carro cinza, o quadradão, com o número 27, vencesse a corrida na terra, e eu queria que a equipe só de soldados de pé e sem tanque vencesse, e venceu. Eu tenho tanto medo da ilusão. Será que eu posso querer você também? Eu não vou ousar fazer tal pergunta. Olha o mapa que eu fiz. Tem giz na nossa mão.

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