Não quero destelhar-te de teus sonhos
Entretanto assombra-me que em meu chão não fazes morada.
Seu olhar fraterno faz luz através da janela do meu quarto. Basta que
eu a atravesse então para que o veja. Quão precária a vida se tornou diante das
lembranças reluzentes contigo. Eterna é a distância então entre meu amor e eu,
distancia no espaço, no tempo, não nos tracejados finos das memórias. Busco
aconchego na saudade e ela me abraça, mal percebo, enforca-me devagar. Tento
esquecer-te e sou tentado na mais pobre fantasia sexual. Persegue-me a natureza
instintiva e de repente sou tão seu, estou tão contigo, e no gozo desesperado recaio
no nada. Diante de ti estive como quem constrói uma casa e descobre dentro de
si a famigerada pergunta: Terás de escolher entre o chão e o telhado, não
poderá ter os dois. O que deseja? E negando-me a responder, embriagando-me,
morria na sutileza de saber-se vivendo em um local inteiro, porém provisório,
um barraco alugado que escondia a fragilidade do passo seguinte. Sabia, porém que a escolha seria também uma
morte, talvez a morte lúcida, aquela que se pode com alguns segundos antever. Ainda
assim, creio que toda morte seja carregada no milésimo por uma esperança. O
saber da morte é um susto, um estalo, é um saber meio que ainda tentando não
saber. O segundo que precede carrega toda a memória, os anos e as lembranças do
vivido. O tracejado da memória se torna uma linha clara e fica como que entre a
ponta da finitude e da infinitude. Morre-se sempre almejando um futuro. Sempre.
Estou vendo a morte, ela é
claríssima, mas haverá ainda vida? Escolhi o chão como que de engasgo, em um
murmúrio. Quase não dava para ouvir a minha voz. Problema algum, eu só não
queria mesmo falar. Não queria escolher. Instantaneamente a chuva caiu. Um pé
d’água. Granizo. Era a sensação que eu tinha. Na verdade nem um pingo caiu. E
nem precisava. Bastava que eu escolhesse um dos lados para que sentisse a
fragilidade do outro lado me solapar. Fosse o telhado a escolha e já quebraria
a horizontalidade da minha coluna, me jogaria no vão e seria então o teto um
inútil guarda-chuva. Infortúnio. Miséria a vida da pobreza de quem está diante
do impossível do amor. Diante de quem está à beira do leito de morte e faz
planos para daqui há alguns dias. Ficaste com o teto, levaste meu chão. Ou fora
o contrário? Não foi prometida casa alguma a nós dois. A quem terá sido? E
ainda assim espero. Espera? Ainda assim sonho no conforto daquele gozo seco e
solitário, na lágrima que escorre ao chegar à janela e ver o quão próximo já
estivestes de mim, e quando deito-me em alguma lembrança e vagalumeio por ela
enquanto em meio a alguma tarefa do dia, ou em meio a uma noite que insiste em
me manter alerta: “Estás chegando? Voltará? Vai chover? Haverá de ser uma casa
com chão e teto? Quanta vida há na morte? Quanta morte há na vida?
Quisera eu que o mundo fosse pequeno como eu sou. A vida não vale mais
do que um amor quentinho deitado no ombro. É quase nada, e é tanto!